Por Ademar Lourenço, de Brasília
A
primeira onda de mobilizações que colocou milhões de pessoas nas ruas de todo o
Brasil já passou. É necessário formar nossas primeiras impressões com
objetividade, avaliar os dados com atenção, conectar um ponto ao outro. Sem
isso, podemos ser pegos por uma “nova onda” e morrermos afogados. E a primeira
pergunta que surge é: porque agora, sem nenhum grande fato político, econômico,
com um governo que gozava de popularidade e em meio a um grande evento
esportivo?
O
que aconteceu foi uma insatisfação como nosso sistema político. Insatisfação
que, em parte, estavam se acumulando há muito tempo. Bastou uma gota d´água, que foi o aumento das
passagens de ônibus nas grandes cidades. Todas as manifestações que não
aconteceram nos últimos 20 anos foram feitas. O acúmulo de insatisfações tem
três níveis de profundidade. Vamos analisar:
Seis meses de
inflação alta e famílias endividadas
44%
da renda das famílias está comprometida com dívidas, segundo o Banco Central.
Um recorde nunca antes alcançado. As pessoas foram às lojas nos últimos 10 anos
e compraram de tudo, o que aqueceu o comércio. Mas a “bolha” do endividamento
das famílias estourou: as pessoas entraram em uma bola de neve, têm que cortar
despesas para pagar dívidas e a economia começa a minguar. O sonho de realizar
as fantasias de consumo se tornou o pesadelo de ver o padrão de vida piorando
por conta das dívidas.
Para
completar, os preços dos alimentos sobem muito rápido. O tomate e a farinha de
trigo mais que dobram os preços esse ano. Isso corrói ainda mais a vida dos
assalariados, tanto os mais explorados quanto a chamada “classe média”. Junto
com a enxurrada de filmes e músicas, ressurge outra moda da década de 80: ver o
salário derreter no bolso. Para completar a onda retrô, porque não repetir as
grandes mobilizações da época?
30 anos de
democracia e as pessoas ainda são tratadas como lixo.
A
Constituição de 1988 foi um grande pacto social. O povo não fez uma revolução,
mas as elites tiveram que entregar muitos anéis para não perder os dedos. O
resultado foi a promessa de uma série de garantias sociais e liberdades
democráticas. O povo esperou 30 anos e as promessas não foram cumpridas.
A
educação, a saúde e o transporte são muito ruins. E isto se torna mais evidente
com o inchaço das cidades. Entre 1980 e 2010 a população urbana do Brasil
saltou de 82 para 160 milhões (dados do IBGE). Os serviços públicos não
acompanharam o crescimento da demanda. O transporte, que foi o estopim dos
protestos, piorou até chegar a níveis insuportáveis. Além disso, a passagem
sempre aumenta mais que a inflação há vários anos. O estopim foram os R$ 0,20.
O
povo tem a sensação de que os serviços são ruins porque o dinheiro público vai
para o ralo da corrupção. As pessoas ficam horas esperando em uma fila de
hospital e os políticos vivem em mordomias com o dinheiro que poderia ser usada
para melhorar a saúde. Não é uma questão de ser materialmente lesado, é a
humilhação de ser roubado por quem deveria dar o exemplo. Depois de 30 anos de
democracia formal, a corrupção continua e os políticos ainda vivem como se o
país ainda fosse uma monarquia e eles a nobreza real.
Corrupção,
serviços públicos ruins, e mesmo as liberdades democráticas se tornaram mais
uma promessa não realizada. Os homossexuais tiveram que ver o congresso votando
o projeto de “cura gay”, que os trata como doentes em pleno século XXI. As polícias
ainda são militarizadas, seguindo exatamente o mesmo modelo da ditadura. Isto
ficou visível para milhões nas repressões às mobilizações. Os grupos que
controlam a mídia também são os mesmos da ditadura. A população que hoje
assiste menos TV e fica no computador começou a contestar isso.
Modelo atual de
estado não representa mais a população
Este
é o aspecto mais profundo das mobilizações. E é o que conecta o Brasil ao resto
do mundo. Há milhares de anos funciona um modelo de estado que tem em sua
cabeça um dirigente, no comando de uma tropa armada e disciplinada, assessorado
por burocratas e sustentado por uma casta de privilegiados. O Egito foi um dos
primeiros lugares do mundo onde este modelo de estado foi colocado em prática no
tempo dos faraós. Pois foi neste mesmo Egito que rebelião ganhou proporções históricas.
As
pessoas estão deixando de aceitar que um pequeno grupo tome as decisões em nome
delas. A população tem acesso à informação como nunca antes. A interação entre
as pessoas hoje é mais fácil. As redes sociais são, em teoria, um meio de
comunicação onde não há hierarquia. Não existe nas redes um “artista” em seu
palco e um público na arquibancada, todo mundo fala para todo mundo. O Brasil
foi atingido pela onda. Todas as instituições foram questionadas: partidos,
congresso, até mesmo os movimentos sociais. O resultado disto é imprevisível.
Nenhum comentário:
Postar um comentário