segunda-feira, 28 de julho de 2014

'Ontem foi domingo e me droguei muito.' Em artigo, juiz debate proibição de drogas e criminalização de usuários

                                                                              por Adriano Espíndola Cavalheiro, de Uberaba/MG
Especial para a Anota

O juiz Gerivaldo Neiva
Gerivaldo Neiva, é um ser humano espetacular. Juiz de Direito é membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD), membro da Comissão de Direitos Humanos da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e Porta-Voz no Brasil do movimento Law Enforcement Against Prohibition (Leap-Brasil). 

Ainda que ele atue na Bahia e eu, como advogado, em Minas Gerais, o que torna remota as chances de trabalharmos juntos em algum dia, tenho acompanhado com atenção suas sentenças e posicionamentos públicos, como seu rechaço ao massacre sionista promovido contra a Palestina neste ano de 2014.

Não é apenas um juiz progressista, mas um jurista comprometido com mudanças sociais e com um projeto de sociedade alternativa com tudo o que está ai. Ao que me parece (ao contrário da maioria dos advogados, promotores e juízes), não é defensor do tipo de sociedade em que vivemos, onde o homem é o lobo do próprio homem, ou sendo mais explícito, onde uma minoria explora, oprime e surrupia a maioria.

Já tive oportunidade de reproduzir uma de suas sentenças neste espaço, onde ele determina, no lugar da prisão tratamento para viciado em drogas (Veja em "Dependência não se cura com prisão, mas com cuidado e tratamento" ). No artigo abaixo, que mais uma vez reproduzo, com autorização de Neiva, neste espaço valioso que me cede a ANOTA, ele volta ao debate sobre as Drogas. Como Franz Kafka, em Metarmofose (leitura que recomenda a todos) ele quase nos mata de susto logo no início do seu texto. Sugiro que todos os leiam, reflitam e reproduzam amplamente, pois desnuda a discussão acerca do proibicionismo e ilegalidade e legalidade das drogas nossas de cada dia!


Boa Leitura,

Adriano Espíndola Cavalheiro

=-=-=-=-
Ontem foi domingo e me droguei muito.
Em artigo, juiz debate proibição de drogas e criminalização de usuários 
Por Gerivaldo Neiva *

Ontem foi domingo e me droguei muito. Comecei por volta das 13h e só fui  parar depois das 22h. Éramos uns poucos amigos e amigas, casais amigos, e quase todos se drogaram também. Uns mais e outros menos. Petiscamos durante o dia e só no final da festa é que resolvemos comer algo mais consistente. Sorrimos muito e também tivemos momentos de conversa séria. Eu, por exemplo, quando me drogo, tenho momentos de euforia e de silêncio. Passo horas ouvindo as pessoas e outras horas com o olhar perdido. Depois, peço desculpas e retorno à euforia e boas risadas.

Um desses meus amigos gosta muito de misturar e reclama que não está sentindo nada, embora todos os demais percebam seu visível estado de euforia. Outro amigo tem sempre um copo de água ao lado, mas poucas vezes bebe a água. Outro tem o ciclo bem rápido e em poucas horas passa da sobriedade para a euforia, silêncio e sono; depois, quando os demais ainda estão na fase da euforia, ele já está completamente recuperado e começa do zero. Outro não come nada e justifica que se comer não consegue continuar se drogando e sente muito sono. Outro, ao contrário, tem sempre um prato de petiscos ao lado e justifica que não consegue se drogar sem comer. Outro, talvez só eu saiba disso, provoca vômito cada vez que vai ao sanitário para continuar se drogando e parecer sóbrio.

Drogas são drogas e ponto final. Todas elas alteram nossa percepção sensorial e, em consequência, a forma de ver o mundo. Esta relação das drogas com cada pessoa é única. Drogas é uma coisa e o efeito delas é algo absolutamente pessoal. Busca-se, portanto, algo entre a pessoa e a droga. Este algo é único e individual e reflete exatamente a história da pessoa com os efeitos da droga. Então, como cada um tem sua própria história, a relação dessa história com a droga também será uma história própria. Por causa disso, uns usam drogas apenas uma vez e não gostam, outros conseguem usar por muitos anos e não se tornam dependentes e outros não conseguem mais parar de usar depois da primeira experiência, tornando-se um usuário dependente.

Independentemente do caráter de legal ou ilegal, lícita ou ilícita, todas as drogas são drogas e estabelecem as mesmas relações com o usuário, pois não sabem se são permitidas ou não. Assim, o uso do tabaco pode causar um profundo bem estar ao fumante, embora possa causar inúmeros tipos de câncer. Da mesma forma, o álcool pode oferecer alegria e euforia e, ao mesmo tempo, causar uma infinidade de problemas à saúde de quem ingere álcool. Adentrando às drogas consideradas ilícitas, a cocaína pode causar sensação de autoconfiança e poder, mas pode também comprometer a saúde de quem cheira ou injeta. Também a maconha pode relaxar e proporcionar viagens leves e lentas, mas também pode causar mal à saúde de quem fuma. O ponto comum é que todas as drogas podem causar a dependência e se tornar um problema para o usuário, seus familiares e comunidade. No fim, o problema a ser enfrentado e discutido é por que alguns usuários se tornam dependentes e problemáticos e outros não. Sendo assim, como jamais conseguiremos acabar com as substâncias que alteram nossa percepção sensorial, interessa muito mais entender a mente humana, as tragédias pessoais e a desigualdade social do que proibir e criminalizar as drogas.

Pensando assim, fico a me perguntar, qual o fundamento jurídico, legal, histórico, filosófico, moral, religioso ou de qualquer outra natureza para considerar marginais e bandidos pessoas que usam algum tipo de droga? E mais, também me pergunto, por que as drogas fabricadas pela indústria capitalista, a exemplo do tabaco, álcool, ansiolíticos e antidepressivos, são consideradas lícitas e, inexplicavelmente, as drogas que não passam pela indústria capitalista são consideradas ilícitas, a exemplo da maconha e cocaína? Será, por fim, que o detalhe em comum seja exatamente este: a indústria capitalista?

Voltando ao começo, ontem fiz um churrasquinho em casa e convidei os amigos para matar a saudade, jogar conversa fora, comentar os jogos da Copa no Brasil e as consequências na campanha política, lembrar das aventuras passadas, dos tempos difíceis, empanturrar de carnes e, principalmente, tomar muitas cervejas. Abasteci o freezer com algumas caixas de cerveja, preparei costelinhas de porco e carneiro com toque final de alecrim; coração de frango, coxinhas da asa de frango, costela de boi ao forno com papel alumínio, calabresa mista apimentada (uma delícia!) e, como não poderia deixar de ser, saborosas picanhas com dois dedinhos de gordura. Na manhã seguinte, como sou de carne e osso, tinha as mãos trêmulas, boca seca, dificuldade de raciocinar e uma sede insaciável, ou seja, estava de ressaca.

Sei, por fim, que no mesmo domingo milhões de pessoas fizeram a mesma coisa e outros milhões usaram drogas consideradas ilícitas. Muitos, como eu, trabalharam normalmente no dia seguinte e outros, não tenho dúvidas, por conta exatamente de sua relação com as drogas, continuaram usando abusivamente e causando problemas à sua família e comunidade.

No mais, é muito provável que muitos policiais militares, que poderiam estar presentes em algum churrasco e provavelmente também de ressaca, resultado das cervejinhas do domingo, irão prender em flagrante jovens pobres, negros, periféricos e excluídos com pequenas porções de maconha ou crack, conduzindo-os a algum delegado, também de ressaca, que irá indiciá-lo, mais pela cor da pele e condição social, como traficante de drogas. Em seguida, algum representante do Ministério Público, também participante do churrasquinho do domingo, irá representar pela prisão preventiva com fundamento puro e simples na “garantia da ordem pública” e, por fim, seu destino será escrito indelevelmente como acusado por tráfico de drogas quando as mãos trêmulas e boca sedenta de algum juiz de direito lhe decretar a prisão preventiva e lhe esquecer na prisão.

Domingo que vem tem mais churrasco com os amigos, muita cerveja e ressaca na segunda-feira, mas também terá muita galera fumando maconha, cheirando cocaína e fumando pedras de crack. A diferença é que uns, por conta da droga usada, cor da pele e condição social, serão presos e condenados e outros, enquanto cidadãos respeitáveis, tomarão um engov ou epocler e assinarão mandados de prisão.

* Juiz de Direito (BA), membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD), membro da Comissão de Direitos Humanos da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e Porta-Voz no Brasil do movimento Law Enforcement Against Prohibition (Leap-Brasil)

Fonte: https://www.facebook.com/gerivaldo.neiva e http://www.gerivaldoneiva.com 

Adriano Espíndola Cavalheiro é advogado militante e articulista da Agência de Notícias Alternativas. Mantém o blog Defesa do Trabalhador - (blog integrante da rede ANOTA). É militante da CSP- Conlutas. Contato:defesadotrabalhador@terra.com.br 

A DIVULGAÇÃO, CITAÇÃO, CÓPIA E REPRODUÇÃO AMPLA DESTE TEXTO É PERMITIDA E ACONSELHADA, desde que seja dado crédito ao autor original (cite artigo de autoria de Adriano Espíndola Cavalheiro, publicado originalmente pela ANOTA – Agência de Notícias Alternativas)

Nenhum comentário:

Postar um comentário